domingo, 14 de maio de 2017

MARIE – MINHA MÃE

O DIA DAS MÃES de 2017 realça a ausência da minha. Apesar dos 28 anos transcorridos desde sua morte, não passou um dia sem que eu tenha pensado nela. Aconselho a quem pode desfrutar da presença da sua, que nunca desperdice a felicidade de alegrá-la com gestos de amor filial, consideração e reconhecimento.


MARIE – MINHA MÃE


O repentino falecimento de minha mãe provocou em mim tantas lembranças e reflexões que, somadas, transbordaram para o papel, quando comecei a registrar algumas das mais relevantes... com o coração chorando de saudades.
Na última hora do dia 19 de Maio de 1989 (último dia útil daquela semana), minha mãe viveu seu último minuto e seu último segundo aqui na terra... Algumas horas antes, só o Papai percebeu que a Mamãe estava diferente; o processo foi tão sereno que os cinco filhos presentes nos enganamos, ao ponto da filha (Ena) que, dias antes, viera de Teresina, para lá regressara pouco antes, prometendo voltar dentro de dez dias, quando a residente em São Paulo (Sônia) deveria regressar. Mamãe teve até disposição para ir ao terraço, como era de seu costume, afim de acenar adeus à filha que ia viajar, o que de fato fez. E ainda tirou um retrato, deixando impresso um dos últimos de seus meigos sorrisos.
Três dias antes eu estive conversando com Mamãe (na noite de 3ª feira), mas nem disse a ela – para poupá-la de preocupações – que na manhã seguinte eu viajaria a São José dos Campos (São Paulo), devendo estar de volta logo na 6ª feira à tarde. Com efeito, cedo na manhã desse dia eu já estava indo de automóvel para o Aeroporto de Cumbica (em Guarulhos) quando os raios do sol iluminaram a densa neblina que escondia o vale do Paraíba lá embaixo, à direita da rodovia. Para compensar o atraso do meu voo, subi ao terraço do enorme complexo aeroportuário e fiquei contemplando os pousos e decolagens. Tanto a imobilidade da neblina do vale quanto o movimento dos aviões me fizeram lembrar de minha mãe (sem imaginar que aquele seria seu último dia...); a neblina porque se assemelhava a uma paisagem de sua querida Inglaterra e os aviões porque vi, entre outros, grandes jatos de quatro países a respeito dos quais minha mãe gostava de contar histórias.
Já em Fortaleza, ainda com a maleta no carro, fui com Carminha à casa de meus pais; passamos horas agradáveis, aqui e acolá quebradas por instantes de inquietação e tristeza diante da discutível aproximação de um quadro como o que afinal o destino veio a desenhar perto da meia-noite. À tardinha Mamãe ainda estava aparente e relativamente bem, em sua cadeira de balanço, cercada pelo marido, cinco filhos e a nora, mais ouvindo do que falando, porém participativamente. Não sei a razão, mas o fato é que fomos conduzidos a comentar episódios de infância, agradáveis de recordar. No contexto, eis-me explicando meu 1º discurso, aquele que só foi ouvido pelos cachorros, patos e galinhas de nossa casa em Parnaíba, há meio século; foi exatamente à tardinha de um 31 de dezembro (1937 ou 38), quando subi à caixa d’água e, daquela “altura”, minha mente infantil contemplou o “mundo” que se despedia de um ano e se preparava para ingressar em um novo. O quintal de nossa casa na Rua Grande (hoje Avenida Getúlio Vargas) era tão vasto que nem as empregadas me viram ou ouviram.
É significativo que minha última conversa com Mamãe tenha incluído o tema da sucessão de fatos inexoráveis, como Ano Velho cedendo lugar a Ano Novo; ela era tão ou mais ligada do que eu próprio me sinto em relação ao assunto; mais do que se despedir de cada ano, ela valorizava o fim de cada dia..., contemplando o entardecer e o anoitecer.
Ela sabia apreciar o sol se pondo e o indescritível cenário que sempre o emoldura; muitas vezes eu e Carminha a convidamos para um passeio (com Célia nos acompanhando) a local onde melhor pudéssemos parar a fim de admirar tanta beleza! Mamãe conhecia bem as constelações e, juntos, muitas vezes admirávamos o Cruzeiro do Sul; ela não se cansava de recordar os comentários de seu pai sobre a “Evening Star” (“Estrela Vespertina”), ou seja, o planeta Vênus, também chamado Vésper e “Estrela d’Alva”; devo ter herdado de minha mãe a inclinação pelas coisas transcendentes, que se tornam corriqueiras apenas para as pessoas que não sabem parar nem olhar para cima. Um dia ela me deu uma linda camisa que suas mãos bordaram, de minha cor favorita; quando ela trajava algo azul claro, logo recordava o dia em que eu, tão criança que ainda pronunciava “azul c-r-a-r-o...”, olhei para cima e lhe mostrei o céu para identificar o tom exato de minha preferência; lembro-me do local onde o fato ocorreu, algo tão simples mas que, graças à extraordinária sensibilidade de Mamãe, tornou-se marcante em minha vida.
O falecimento de minha mãe se insere no contexto da sucessão de fatos inexoráveis, representando – para mim – uma geração que é sucedida, tal como o ano ou o dia que sucede a outro, apenas em escala bem maior. Enquadrando-me nessa escala – etária – vejo-me sucedendo, perante meus filhos e netos, a figura veneranda daquela que se despediu definitivamente do convívio da família. Envelheci, assim, uma geração... foi o que senti – e meu coração chorou – quando, sentado em sua cadeira de embalo, refleti que Mamãe havia silenciado para sempre. O Criador fez o universo e desceu aos detalhes do planeta Terra e dos seres que nele habitam; e estabeleceu regras, condições e épocas. “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu; há tempo de nascer, e tempo de morrer...; tempo de chorar, e tempo de rir...; tempo de buscar, e tempo de perder...; tempo de estar calado, e tempo de falar...; tempo de amar, e tempo de aborrecer...; tempo de guerra, e tempo de paz”. (Ec 3.1-8). As leis de Deus são imutáveis, permitindo seu aproveitamento pela inteligência com que Ele dotou a raça humana. Deus também manifestou Seus planos relativamente aos homens, enquanto peregrinos aqui e, depois, na eternidade; está nas Escrituras – a Bíblia. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça...”  E, assim, cada geração é sucedida por outra, como cada ano e cada dia. São fatos inexoráveis.
Em 1979 pedi à Mamãe que escrevesse, sem qualquer preocupação literária, uma cena de viagem; a princípio ela recusou, alegando não ser escritora, mas cedeu aos meus argumentos, quando lhe sugeri que imaginasse estar apenas me escrevendo uma carta respondendo perguntas sobre episódios vividos por ela. Comprei um caderno espiral grosso e dentro escrevi “Histórias Verdadeiras Contadas Por Minha Mãe”; a seguir, fiz um índice com números de ordem das narrativas e das páginas. O resultado foi um sucesso! Muitas vezes, pessoalmente ou por telefone, eu interrompia um relato de suas vivências e lhe pedia para colocar aquilo no papel; a reação dela era a mesma – reagia inicialmente mas finalmente me satisfazia...! Se eu soubesse que minha mãe iria nos deixar agora, eu teria dado prioridade à apenas iniciada datilografia, revisão e seleção das melhores, para imprimir e publicar o “livro antológico”, que, ao longo de dez anos, ela escreveu – abrangendo oito décadas – superando uma centena de narrações.
Num exame retrospectivo, vejo que foi muitíssimo o que de minha mãe recebi, em contraste com a insignificância que de mim ela recebeu. É realmente inestimável o tesouro que ela me legou (a mim e aos outros filhos) em forma de exemplos de mansidão, dignidade, abnegação, sensatez, discrição, tolerância, humildade e outras virtudes que a tornavam tão admirável. Para mim particularmente, além de tudo isso ela deixou também a marca indelével do insubstituível carinho materno. Sou grato a Deus por ela.
Nunca mais meus ouvidos ouvirão histórias contadas por minha mãe, nem meus olhos a verão; e nunca mais poderei segurar-lhe uma das mãos, como fazia sempre que estávamos juntos... Farei de conta que ouvi dela a mesma frase que Salomão ouviu de seu pai (o rei Davi) quando este se preparava para morrer: “Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem.” (I Rs 2.2).
Procurarei lembrar que, para Mamãe, tempestade era prenúncio de bonança.
Cedo ela incutiu em minha mente essa noção de otimismo, baseada na fé em Deus e no poder da oração; ainda conservo cópia do conto “O Grumete”, de Júlia Lopes de Almeida (publicado na “Crestomatia”), que minha mãe me deu para ler e meditar, quando eu tinha 13 anos. Trata-se de um menino de 12 anos, que obteve emprego num “vapor” de navegação costeira, para ajudar a mãe viúva. Entre Belém e o Rio de Janeiro o garoto afeiçoou-se a um velho paralítico das pernas; uma tormenta fez o navio afundar, mas a confiança do grumete nas orações de sua mãe o tornou herói, salvando o amigo idoso, que depois veio a lhe recompensar generosamente. Muitas vezes Mamãe e eu nos referíamos a esse conto, que se tornou como um código entre nós em várias ocasiões. A palavra “Grumete” lembrava que, com fé em Deus, orações, coragem e amor ao próximo, a bonança haveria de suceder a tempestade. Corroborando tudo que ela me ensinara, um dia ela copiou da Bíblia um Salmo para me presentear; destinava-se a me acompanhar dia e noite nos Estados Unidos, onde eu iria estudar; saí com 18 anos e quando voltei, aos 19, já não precisava do papel, pois de tanto recitar aqueles versos, decorei o Salmo inteiro. Dele constam: “O que habita na sombra do Altíssimo, na proteção do Deus do Céu descansará”, “Tu és, Senhor, a minha esperança” e “Enchê-lo-ei de dias e mostrar-lhe-ei a minha salvação”.
Mamãe me viu crescer não só física como espiritualmente; três anos antes de falecer, ela teve a oportunidade de ler o que escrevi sob o título “Origem e Destino” (publicado em 1986 pela Imprensa Batista Regular, de São Paulo), no qual as referências iniciais são precisamente aos meus pais.
Nos últimos anos tive o privilégio de falar várias vezes à Mamãe sobre os ensinamentos, o amor, a ressurreição e o poder de Cristo – único mediador entre Deus e os homens. Ela nunca discordou das verdades bíblicas que lhe lembrei, esclareci ou ensinei; mas só Deus sabe como ela as considerou e acolheu em seu coração.
Minha mãe conservava ensinamentos de seus genitores e me transmitiu diversos deles, como o ditado que aprendeu quando era criança na Inglaterra: “Even the darkest cloud has a silver lining” (Até a nuvem mais escura tem uma franja prateada). Ela comprovou a seguinte afirmativa bíblica: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho não se desviará dele.”(Pv 22.6). Meu avô materno –inglês de nascimento e parnaibano de coração – faleceu há 60 anos; e minha avó –piauiense educada em Londres – há 42; apesar de longo,  o tempo não conseguiu apagar, em Mamãe, a influência benéfica de seus pais em sua vida.
Poucas semanas antes de morrer, ela alisou meus cabelos e disse que minha cabeça lembrava a de Vovô, cuja trunfa ela gostava de alisar e sabia que ele deliciava tal gesto afetuoso da filha caçula. Também recentemente, contou-me os últimos momentos de Vovó, que morreu quando eu estava estudando no Exterior.
O nome completo de minha mãe era Maria Castelo Branco Clark Nunes, mas todos a chamavam de Marie – o apelido inglês escolhido por seu pai – ou D. Marisinha. Ela nasceu em 12.9.1898, em Parnaíba, então importante entreposto comercial, elo entre a navegação marítima internacional e a fluvial. Ali ela residiu 49 anos; nos 41 seguintes residiu em Fortaleza.




Ela e meu pai – Celso Augusto de Moura Nunes – tiveram longa e feliz vida conjugal; Comemoraram Bodas de Diamante (60 anos) em 1981. Dignos de admiração o respeito mútuo e a exemplar dedicação de um ao outro, traduzidos em gestos do cotidiano; eles refletiam a união dos filhos que souberam criar e educar: Frederico (Fred), Reginaldo Aloísio (Reggie), Maria Madalena (Ena), Maria Sônia (Sônia), James Kelso (Jimmy) e Célia Maria (Célia).

Dosando a fleuma britânica (paterna) com o bom senso (materno), Mamãe sabiamente adaptou-se às transformações naturais e circunstanciais das estações da vida, da primavera ao inverno.


Aos seus muitos descendentes ela deixou uma lição de equilíbrio emocional: foi plácida como os lagos de Keswick (terra natal de seu pai) e contemplativa como as circunvizinhas montanhas de Cumberland. Mamãe nunca deixou de ter por perto um quadro dessa lindíssima região inglesa, que felizmente conheci a tempo de mostrar a ela as fotografias que eu e Carminha tiramos lá, inclusive de pontos que sabíamos serem favoritos daquela que tanto os conheceu e amou. Minha mãe foi também resistente e produtiva como as carnaubeiras que caracterizam e embelezam a paisagem piauiense, de Sul (procedência de sua mãe) a Norte (sua própria origem).
Ao alcance de sua vista sempre esteve, igualmente, uma foto do monumento que, há muitos anos, o Governo do Estado erigiu em Parnaíba em homenagem ao meu avô, cujo busto (em bronze) encima um tronco de carnaubeira (em concreto), pelo pioneirismo de James Frederick Clark na exportação de cera de carnaúba. Apesar de muito feliz por residir em Fortaleza, onde cultivou belas amizades, Mamãe sempre guardou um pedaço da Inglaterra e do Piauí em seu delicado mas espaçoso coração.
Não me foi possível ver a agonia de minha mãe, pois no momento de sua morte, eu e Carminha, com nossa filha Ivana e seu marido, Roriz Neto, estávamos nos dirigindo para a casa de meus pais, de onde a Sônia me telefonou dizendo, aflita, que nossa mãe estava morrendo. Ao passar pelo “vale da sombra da morte”, Mamãe foi ouvida (pela Célia) invocando: “Meu Deus” e “Meu Jesus...!” A seguir, ela se desvencilhou dos vínculos terrenos para transpor os umbrais de sua nova e eterna morada.
Com sua morte, aprendi a amarga lição de que “não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje”, pois eu devia ter escrito, antes, outra coletânea de lembranças e reflexões para oferecer à minha mãe – viva – como um buquê de flores colhidas no jardim do reconhecimento e do amor filial.

POSFÁCIO

O capítulo acima foi escrito em Maio e Junho de 1989 e publicado em 2014 - sob o título “Franjas prateadas em nuvens escuras” -  no livro Compartilhando Riquezas de Vida.

Quando o redigi eu tinha 61 anos e hoje tenho 89. Meus pais alegraram com suas presenças a festa de meus 60 anos; mas eles já não viviam quando cheguei aos 66...Mamãe faleceu aos 90 (em 19.5.1989) e Papai aos 97 (em 18.6.1993); eu tinha respectivamente 61 e 65 anos.

O DIA DAS MÃES de 2017 realça a ausência da minha. Apesar dos 28 anos transcorridos desde sua morte, não passou um dia sem que eu tenha pensado nela. Aconselho a quem  pode desfrutar da presença da sua, que nunca desperdice a felicidade de alegrá-la com gestos de amor filial,consideração e reconhecimento.

Ao renovar hoje, pela Internet, o que de coração escrevi sobre Mamãe em 1989, aproveito para oferecer às mães - de todas as idades -  que me honrarem com a leitura de meu modesto blog, uma pequena seleção de fotos de MARIE em diversas idades, além das que ilustram o artigo acima.

Jimmy Clark Nunes


FOTOS OFERECIDAS ÀS MÃES








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