Recordando
Rogaciano Leite – o poeta que navegava com desenvoltura entre o popular e o
erudito.
Corria o ano de 1951 quando um poeta repentista de Fortaleza
chegou em Parnaíba, vindo a convite de uma entidade local para uma “noite de
cultura” no melhor clube da cidade. Eu e Carminha comparecemos e ficamos muito
bem impressionados com o que vimos e ouvimos.
Chamou-me particularmente a atenção a resposta que ele deu à elegante senhora
que lhe perguntou “Qual a mais divina, a música ou a poesia?” – Pois ele o fez
com profundidade e erudição, tudo em versos rimados, fluindo como uma cascata de
água cristalina!
Resolvemos convidá-lo para almoçar em nossa casa no dia seguinte. Foi um
deleite a conversa com uma personalidade tão extraordinária. Apesar de sermos
tão diferentes, e ele sete anos mais velho do que eu, houve uma simpatia recíproca
entre nós. Um detalhe que se tornou inesquecível foi ouvi-lo declamar uma
extensa poesia, de cor, na continuidade de um relato das circunstâncias em que ele
a havia concebido.
Contou-nos que havia feito uma viagem de navio pelo rio Amazonas,
que ansiava conhecer para apreciar e colocar em palavras o que viesse a perceber
com os olhos. Vários dias haviam passado, no entanto, sem que uma mínima
inspiração lhe brotasse na mente. Numa tarde, já ficando frustrado, foi
instintivamente à popa do navio e lá ficou sozinho, meditando sobre aquela
vastidão de água atravessando a floresta imensa.
E quando o dia começou a virar noite, eis que passou voando uma
coruja tipo “rasga-mortalha” - contrastando o cinza do lusco-fusco com o branco
de suas penas e quebrando com estridência o melancólico silêncio. De repente
ele emendou o grito da ave dizendo “À direita, timoneiro!” e prosseguiu com uma
torrente de pensamentos, tudo rimando! Ao terminar, realizado e contente, recolheu-se
ao camarote e lá escreveu cada palavra da longa poesia - que minutos antes só
existia em sua cabeça privilegiada...! E foi assim que eu e Carminha fomos
honrados com a recitação daquela grande poesia, na voz do magistral autor. A
ocasião foi tão marcante que posso ouvir, em pensamento, o eco da voz de
Rogaciano Leite.
Elogiando nosso primogênito, de apenas um ano (foto), ele escreveu
em nosso livro de hóspedes, num instante,o seguinte:
“Neste lar -
quanta alegria: Um casal em harmonia,um filho que alegra os pais; na terra - que
Paraíso! - Que mais se lhe faz preciso? - Eu penso que nada mais. Foi numa tarde ditosa que
nesta casa formosa belos momentos passei... E vi - que tarde bonita! - Que a felicidade
habita nesta casa onde almocei. Que Deus, de eterna bondade, conserve a felicidade
neste lar - que é tão feliz. São estas as preces minhas, as preces - que nestas
linhas - Com sinceridade eu fiz.”
(Assinado)ROGACIANO
LEITE - Parnaíba, 11/10/1951
Na década seguinte, quando eu e minha família já morávamos em
Fortaleza, tive o prazer de encontrar o grande poeta em alguns eventos sociais.
Mas algo que me causou momentos agradáveis de admiração aconteceu dentro de um
táxi, com ele. Num dia em que meu carro estava na oficina e peguei um táxi para
ir almoçar em casa, vi no quarteirão seguinte a figura elegante de Rogaciano
Leite.
Mandei parar e convidei-o a entrar, oferecendo-me para levá-lo
aonde quer que ele desejasse. Ele retribuiu o cumprimento e entrou no carro,
agradecendo e dizendo - em versos rimados - que aceitava a gentileza e foi dando
o endereço. Tudo que eu dizia ou perguntava, ele respondia em versos...! Quanto
mais eu ria, mais ele demonstrava satisfação em estar me proporcionando aquela
oportunidade fora do comum. Quando ele desceu, despediu-se e fechou a porta do
carro, ainda teve talento para finalizar com um simpático agradecimento –
rimando e sorridente...!
Mas, afinal, quem foi ele? Poeta repentista de primeira grandeza,
escritor, jornalista e orador, diplomado em Letras Clássicas pela Faculdade de
Filosofia do Ceará. No Rio foi repórter do jornal “A Última Hora” e da “Revista
da Semana”; e ganhou o “Prêmio Esso de Jornalismo”. Fernando Viana, da Academia
Maranhense de Letras, disse: “Ouvir Rogaciano não é encher os ouvidos de versos,
é extasiar-se da própria poesia; é confundir-se com os homens na sublimação do belo.”
Luiz da Câmara Cascudo escreveu o seguinte em “A República”,
de 10.6.1948: “Rogaciano Leite independe do Tempo e do Futuro. Revive Castro Alves
e Casimiro de Abreu, florestas de Gonçalves Dias, mares verdes de José de
Alencar. Resume céu, mar, ares, homens e pensamentos, numa brutalidade revolvedora, instintiva,
imediata e magnífica como uma força incomparável da Natureza. Seus versos trazem
terra, árvores, aves, músicas, amores, tragédias.
Ressuscitou o perdido prodígio de falar aos mortos e às coisas
imóveis. Do fundo do mar e por detrás das estrelas, escondido nas pétalas da flor
e nas lianas amazônicas, todos os entes, todas as coisas lhe obedecem ao apelo,
ouvem-lhe a voz miraculosa, atendem-lhe ao chamado irresistível. E, na moldura
das rimas, na quadratura inflexível do ritmo, desfilam monstros, florestas,
oceanos, maravilhas. Rogaciano Leite é um orgulho para os nossos sentidos
contemporâneos, antigo, atual e sempre novo, impreciso, infixável, rio varando o
mato, o tabuleiro cinzento, a serra alta, o descampado sem fim. Rimas e ritmos
são apenas os horizontes limitadores dessa grande, tonta e luminosa ave de
melodia e beleza verbal.”
Lamentavelmente, sua vida foi muito curta para a grandiosidade do
brilhante intelectual pernambucano radicado no Ceará, eis que ele não chegou a
completar 50 anos. Nascido em 1.7.1920, faleceu em 7.10.1969.
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