quinta-feira, 26 de maio de 2016

ECO DA VOZ DE UM GRANDE POETA

Recordando Rogaciano Leite – o poeta que navegava com desenvoltura entre o popular e o erudito.

Corria o ano de 1951 quando um poeta repentista de Fortaleza chegou em Parnaíba, vindo a convite de uma entidade local para uma “noite de cultura” no melhor clube da cidade. Eu e Carminha comparecemos e ficamos muito bem impressionados com o que vimos e ouvimos.
Chamou-me particularmente a atenção a resposta que ele deu à elegante senhora que lhe perguntou “Qual a mais divina, a música ou a poesia?” – Pois ele o fez com profundidade e erudição, tudo em versos rimados, fluindo como uma cascata de água cristalina!
Resolvemos convidá-lo para almoçar em nossa casa no dia seguinte. Foi um deleite a conversa com uma personalidade tão extraordinária. Apesar de sermos tão diferentes, e ele sete anos mais velho do que eu, houve uma simpatia recíproca entre nós. Um detalhe que se tornou inesquecível foi ouvi-lo declamar uma extensa poesia, de cor, na continuidade de um relato das circunstâncias em que ele a havia concebido.
Contou-nos que havia feito uma viagem de navio pelo rio Amazonas, que ansiava conhecer para apreciar e colocar em palavras o que viesse a perceber com os olhos. Vários dias haviam passado, no entanto, sem que uma mínima inspiração lhe brotasse na mente. Numa tarde, já ficando frustrado, foi instintivamente à popa do navio e lá ficou sozinho, meditando sobre aquela vastidão de água atravessando a floresta imensa.
E quando o dia começou a virar noite, eis que passou voando uma coruja tipo “rasga-mortalha” - contrastando o cinza do lusco-fusco com o branco de suas penas e quebrando com estridência o melancólico silêncio. De repente ele emendou o grito da ave dizendo “À direita, timoneiro!” e prosseguiu com uma torrente de pensamentos, tudo rimando! Ao terminar, realizado e contente, recolheu-se ao camarote e lá escreveu cada palavra da longa poesia - que minutos antes só existia em sua cabeça privilegiada...! E foi assim que eu e Carminha fomos honrados com a recitação daquela grande poesia, na voz do magistral autor. A ocasião foi tão marcante que posso ouvir, em pensamento, o eco da voz de Rogaciano Leite.
Elogiando nosso primogênito, de apenas um ano (foto), ele escreveu em nosso livro de hóspedes, num instante,o seguinte:
“Neste lar - quanta alegria: Um casal em harmonia,um filho que alegra os pais; na terra - que Paraíso! - Que mais se lhe faz preciso? - Eu penso que nada mais. Foi numa tarde ditosa que nesta casa formosa belos momentos passei... E vi - que tarde bonita! - Que a felicidade habita nesta casa onde almocei. Que Deus, de eterna bondade, conserve a felicidade neste lar - que é tão feliz. São estas as preces minhas, as preces - que nestas linhas - Com sinceridade eu fiz.”

(Assinado)ROGACIANO LEITE    -    Parnaíba, 11/10/1951

Na década seguinte, quando eu e minha família já morávamos em Fortaleza, tive o prazer de encontrar o grande poeta em alguns eventos sociais. Mas algo que me causou momentos agradáveis de admiração aconteceu dentro de um táxi, com ele. Num dia em que meu carro estava na oficina e peguei um táxi para ir almoçar em casa, vi no quarteirão seguinte a figura elegante de Rogaciano Leite.
Mandei parar e convidei-o a entrar, oferecendo-me para levá-lo aonde quer que ele desejasse. Ele retribuiu o cumprimento e entrou no carro, agradecendo e dizendo - em versos rimados - que aceitava a gentileza e foi dando o endereço. Tudo que eu dizia ou perguntava, ele respondia em versos...! Quanto mais eu ria, mais ele demonstrava satisfação em estar me proporcionando aquela oportunidade fora do comum. Quando ele desceu, despediu-se e fechou a porta do carro, ainda teve talento para finalizar com um simpático agradecimento – rimando e sorridente...!
Mas, afinal, quem foi ele? Poeta repentista de primeira grandeza, escritor, jornalista e orador, diplomado em Letras Clássicas pela Faculdade de Filosofia do Ceará. No Rio foi repórter do jornal “A Última Hora” e da “Revista da Semana”; e ganhou o “Prêmio Esso de Jornalismo”. Fernando Viana, da Academia Maranhense de Letras, disse: “Ouvir Rogaciano não é encher os ouvidos de versos, é extasiar-se da própria poesia; é confundir-se com os homens na sublimação do belo.”
Luiz da Câmara Cascudo escreveu o seguinte em “A República”, de 10.6.1948: “Rogaciano Leite independe do Tempo e do Futuro. Revive Castro Alves e Casimiro de Abreu, florestas de Gonçalves Dias, mares verdes de José de Alencar. Resume céu, mar, ares, homens e pensamentos, numa brutalidade revolvedora, instintiva, imediata e magnífica como uma força incomparável da Natureza. Seus versos trazem terra, árvores, aves, músicas, amores, tragédias.
Ressuscitou o perdido prodígio de falar aos mortos e às coisas imóveis. Do fundo do mar e por detrás das estrelas, escondido nas pétalas da flor e nas lianas amazônicas, todos os entes, todas as coisas lhe obedecem ao apelo, ouvem-lhe a voz miraculosa, atendem-lhe ao chamado irresistível. E, na moldura das rimas, na quadratura inflexível do ritmo, desfilam monstros, florestas, oceanos, maravilhas. Rogaciano Leite é um orgulho para os nossos sentidos contemporâneos, antigo, atual e sempre novo, impreciso, infixável, rio varando o mato, o tabuleiro cinzento, a serra alta, o descampado sem fim. Rimas e ritmos são apenas os horizontes limitadores dessa grande, tonta e luminosa ave de melodia e beleza verbal.”
Lamentavelmente, sua vida foi muito curta para a grandiosidade do brilhante intelectual pernambucano radicado no Ceará, eis que ele não chegou a completar 50 anos. Nascido em 1.7.1920, faleceu em 7.10.1969.

Há muitos anos uma importante avenida de Fortaleza tem o seu nome; e em 2012 sua cidade natal, Itapetim, deu o nome do ilustre filho a uma praça, inaugurando uma bela estátua do poeta em atitude de declamação. Ao contemplá-la, seus contemporâneos poderão ouvir em pensamento o eco da voz de um grande poeta.

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